A casa era grande, antiga dividida em muitos cômodos. Os quartos ficavam em uma ala da construção separada por um longo corredor pouco iluminado dos demais ambientes. Pela ampla janela que dava para o pátio dos fundos viam-se os grandes galpões e dois fornos usados para secagem de fumo.
Olhando além se avistava a vasta plantação de fumo que ia até o inicio do Cerro da Igreja. Os pés de fumo carregados de enormes folhas anunciavam que este ano a safra seria melhor que no anterior, o que alegrava a população de Passo Saint Clair, às margens do Rio Jacuí, interior do município de Agudo.
O sol raiou cedo anunciando mais um dia de muito trabalho e calor. Laura e Germano levantaram e começaram as primeiras tarefas da sua incansável e rigorosa rotina. Enquanto Germano tratava os animais – patos, galinhas, porcos e as vacas – Laura ordenhava duas vacas que era o suficiente para o seu consumo e ainda sobrava para fazer um queijo por semana e ganhar uns “trocados” extras.
Feito isso retornam a casa e passam a saborear um chimarrão enquanto Laura preparava a mesa do café da manhã com os produtos cultivados por eles mesmos: leite, queijo, lingüiça, nata, schimier, melado, açúcar “amarelo” e pão de milho assado no forno à lenha que Laura fez questão de manter até os dias de hoje.
Durante a primeira refeição os dois aproveitam para conversar sobre as “lidas” da lavoura. Nisso toca o celular de Laura. Ela atende:
- Alô, quem fala?
Do outro lado uma voz forte, máscula e envolvente responde:
- Bom dia, Laura! Não “reconheceu” a minha voz?
Ela, confusa, responde:
- Não... Quem é?
- Sou eu, o Valter. Hoje vou fazer uma visita para vocês. Até mais.
Laura desliga o telefone e dirige-se ao marido dizendo que o instrutor agrícola virá mais tarde para dar orientações sobre a colheita.
Germano, mentalmente pergunta-se “por que ele não ligou para o meu celular?”
Ao terminar o café o casal vai para a lavoura. Nesse dia Laura aparenta estar mais disposta, não reclama tanto da vida difícil do trabalho rural. O fato que a deixa animada é a visita do instrutor, pois ainda é jovem e passa dias somente em companhia do marido, que apesar de pouca idade, não gosta de se divertir e preocupa-se exclusivamente com o trabalho.
Laura volta mais cedo para fazer o almoço, mas antes resolve tomar um banho. Apesar do trabalho árduo é uma moça muito bonita, sua pele clara, de origem alemã, tem um leve tom dourado que lhe confere um ar saudável, os olhos são azuis da cor céu e os lábios finos e rosados demonstram a delicadeza do seu rosto emoldurado por longos cabelos loiros que recebem um cuidado todo especial. Seu corpo esguio é recoberto por um singelo vestido florido. Laura olha-se no espelho, arruma mais uma vez o cabelo e gosta da imagem que vê.
Vai para a cozinha e prepara o almoço, enquanto escuta os avisos da Rádio Agudo. Germano chega e eles almoçam em silencio, cada um perdido em seus próprios pensamentos.
O marido vai tirar uma sesta e Laura senta-se à sombra de uma frondosa árvore em frente a sua casa escutando músicas em seu aparelho MP3.
Nisso ela ouve o barulho de um carro. É Valter, o instrutor que estava chegando e Laura o recebe alegremente. Ela busca uma cadeira e chama o marido. Os três passam a tratar da colheita do fumo, como deverá ser cuidado, a temperatura dos fornos e deixam agendado o dia em que a empresa fará a compra.
Feito os acertos, Germano vai para a lavoura e Laura oferece chimarrão para Valter. Ele aceita um e diz:
- Tu “é” uma moça muito bonita, nunca “pensou” em abandonar esta vida de colona?
Timidamente ela responde:
- É que me casei bem nova, nunca tive outros namorados; meus pais não me deixavam sair, a não ser para ir à escola.
Ele insiste:
- Mas nunca pensou em ter uma vida mais fácil?
- Até que eu gostaria, mas meu marido jamais concordaria comigo...
- Ah, se eu tivesse te conhecido antes, te proporcionaria uma vida melhor...
Valter se despede com um olhar provocante e a deixa muito pensativa.
Naquela noite Laura procura fazer um carinho em seu marido, mas ele a rejeita dizendo estar com muito sono, pois teve um dia cansativo. A esposa então, perde o sono, imaginando como seria sua vida com outra pessoa e em outro lugar. As palavras de Valter não saem de seu pensamento.
No dia seguinte recomeça a rotina diária, somente quebrada pelo torpedo que Laura recebe: “Vc ñ sai do meu pensamento. Valter”.
Germano pergunta quem é e pela primeira vez ela mente ao marido, dizendo que é mensagem da operadora.
Passada uma semana, Valter volta à propriedade para mais uma orientação sobre o cultivo do fumo e encontra Laura sozinha, pois não se sentia bem e não acompanhou o marido no trabalho da lavoura.
Laura, imediatamente sentiu-se melhor e, dessa vez, convidou Valter para entrar. Aproveitando a pouca iluminação do longo corredor, os dois deixam explodir a incontida atração que sentem um pelo outro. Aproveitando-se da fragilidade e ingenuidade de Laura, o amante propõe encontros na cidade, onde ficarão mais sossegados, sem a possibilidade do marido os encontrar. A partir de então ela passa a arrumar motivos para ir sozinha para a sede do município onde se encontra clandestinamente com seu novo amor.
Com essa nova relação amorosa, Laura distancia-se do marido que passa a desconfiar da esposa, agora sempre com um ar ausente e sonhador.
A caminho da lavoura, Germano encontra um amigo que mora próximo de suas terras e conversam:
- Boa tarde Germano! Tenho percebido que tu “tem” vindo sozinho para lavoura, Laura está doente?
- Não, ela tem ido bastante para a cidade, sempre acha uma “coisa” pra fazer. Agora até disse que se matriculou num curso de informática...
- Pois é... já ouvi uns comentários na vizinhança...
Germano, então, cria coragem e “abre o jogo” com o amigo:
- Olha, eu tô desconfiado da minha mulher, acho que ela está me traindo...
- Antes de tomar qualquer decisão espera para ter certeza. Não faça nada de “cabeça quente”. - Alerta o amigo.
Eles despedem-se e seguem para o trabalho.
Num dos encontros entre os dois amantes Valter faz a seguinte proposta à amada:
- Laura, larga do seu marido e vamos embora de Agudo, vou te dar uma vida nova.
Ela fica muito entusiasmada, mas pede um tempo para pensar. Sai do local onde sempre se encontram angustiada, não sabe o que fazer, que decisão tomar.
Então, lembra-se da propaganda que ouvia no rádio de uma cartomante chamada Ana que atende na Rua Pássaros e Flores, na vila Caiçara.
Chegando lá, bate à porta de um a casinha humilde, e uma senhora vem atendê-la. A mulher de aspecto desleixado, com roupas surradas, turbante na cabeça, óculos embaçados e unhas sujas convida-a a sentar-se frente a uma mesa com toalha encardida e rasgada onde crepita um toco de vela.
A cartomante pega seu baralho gasto pelo uso e começa a desvendar a vida de Laura:
- Você tem uma vida sofrida, um bom marido, mas não está feliz com ele.
E apontando para outra carta, diz:
- Existe outro homem em tua vida. Ele te encanta por ter uma vida diferente da tua. Tu “tá” em dúvida... Cuidado para não “trocar o certo pelo duvidoso...”
Laura paga o valor de cinquenta reais pela consulta e sai mais angustiada do que quando chegou.
Retorna para casa e percebendo a desconfiança do marido, no dia seguinte retoma normalmente as suas tarefas rurais.
Os próximos dias transcorrem normalmente na lavoura de fumo, mas a dúvida continua povoando os pensamentos de Laura, até que no final de semana recebe a visita do instrutor.
Nesse dia, Germano não se afasta nenhum instante, o que deixa os amantes intrigados. Valter fixa o olhar em Laura, querendo uma resposta, mas ela sempre desvia, com medo de ser descoberta pelo marido.
Mais tarde quando está sozinha recebe a seguinte mensagem de Valter em seu celular: “Stou pronto. T spero às 9h no lugar de sempre ou nunca mais...”
Laura passa a noite em claro refletindo sobre a proposta de Valter sem saber o que fazer. Olha para o marido dormindo, lembra da vida que tem com ele e como poderá ser de amanhã em diante. Pensa também nos ensinamentos que recebeu de sua mãe, e nas palavras do Pastor com relação ao casamento. Em meio às dúvidas ela adormece.
Logo cedo Germano levanta e Laura permanece na cama por mais uns instantes. Confusa e ansiosa resolve arrumar as malas e ir embora com Valter sem falar com seu marido. Ela levanta da cama, vai ordenhar as vacas, prepara o chimarrão e logo em seguida põe a mesa do café. Laura não consegue manter-se calma, entorna o café sobre a toalha branca e Germano pergunta:
- “Tu tá” com algum problema? Tenho notado que anda muito estranha nos últimos dias.
Laura responde:
- Não, está tudo bem, dormi pouco esta noite.
E Germano insiste:
- Tem alguma coisa que eu possa ajudar? “Tu sabe” que pode contar comigo sempre.
As palavras de Germano a deixam perturbada, mas ela responde suspirando profundamente:
- Não, está tudo bem!
Os dois terminam o café e o marido levanta para ir à lavoura e antes que ele perguntasse, ela fala:
- Você se importa se eu não for com você hoje?
Ele responde meio cabisbaixo:
- Não tem problema, ultimamente já “tô” acostumado a fazer sozinho todo trabalho da lavoura. Pode ficar em casa.
Laura ficava cada vez mais confusa, parecia que Germano estava adivinhando algo. Deixou que ele se fosse e foi para o quarto arrumar as malas. Enquanto dobrava suas roupas ela chorava com medo estar tomando a decisão errada.
Com as malas prontas ela olha para o relógio que marcava oito horas e deixava-a cada vez mais aflita, pois estava chegando o momento de sair.
Germano termina de capinar a última carreira de fumo e senta a beira da estrada para descansar e admirar sua lavoura. Sua plantação estava bem cuidada, o que garantia sua safra e boas vendas. Ele já fazia planos para comprar um carro, uma televisão nova que Laura sempre queria e pagar algumas contas que ficaram pendentes nos comércios da cidade.
Chegando a casa percebeu algo estranho. Na área de entrada, havia flores muito coloridas enfeitando o degrau da porta que estava fechada, o que o deixou muito intrigado.
Ao entrar, encontra Laura usando um vestido florido, toda cheirosa, arrumando a mesa para um almoço especial, com tudo o que Germano mais gostava. Ele fica assustado tentando lembrar que data importante havia esquecido e todo sem jeito pergunta à esposa:
_ O que está acontecendo aqui, “tem” visita? Estou esquecendo de alguma data importante?
E Laura responde sorrindo:
- Não Germano, estou apenas fazendo um agrado, pois você trabalha incansavelmente de sol a sol e eu não tenho lhe dado o devido valor. Resolvi ficar em casa para lhe fazer esta surpresa.
Os dois se abraçaram e ele disse:
- Sou muito feliz por “tu” ser minha mulher... não saberia viver longe de ti.
Com uma lágrima deslizando em seu rosto, ela responde:
- Eu também não saberia viver longe de ti, Germano...
Os dois sentaram-se à mesa e almoçaram como se nunca tivesse acontecido nada...
Releitura do conto "A Cartomante", de Machado de Assis.
(Angela Vogel e Eloni Jordani)
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